Pelo menos isso é o que afirmavam certos clérigos da Idade Média, para quem o infortúnio na vida era um presente de Deus. Para esses homens, a feiura, a pobreza e as enfermidades deveriam ser vistas como verdadeiras graças divinas, muito saudáveis para o espírito. Dos diversos escritos medievais a esse respeito, um dos mais interessantes – e cômicos – é o Horto do Esposo: praticamente todos os tipos de desgraça são nele citados, e elogiados, como experiências essenciais para um dia-a-dia edificante. Por exemplo:

“Não tão somente a feiura do corpo é proveitosa ao homem em prol da sua alma, especialmente para o fazer mais humilde, mas ainda a míngua e falecimento dos membros e do sentido do corpo é muito proveitoso ao homem.”

Pouco se sabe sobre o autor dessa pérola de sabedoria ascética. Horto do Esposo foi publicado anonimamente no mosteiro português de Alcobaça, no século XIV, e constitui-se de uma compilação de reflexões e narrativas moralizantes. De acordo com o autor, Jesus Cristo (à época comumente chamado de esposo, principalmente pelas carolas) nutria a alma dos cristãos com ensinamentos morais, assim como uma horta pode nutrir quem dela se alimenta – daí o título Horto do Esposo. Algumas de suas histórias beiram o ridículo quando lida em nossos dias: em uma delas, por exemplo, é relatado o caso de um rapaz virgem cujo sangue era tão virtuoso (pois casto) que com ele foram ressuscitados quinhentos homens. Não é maravilhoso?

Eis um resumo de seus belos conselhos para a vida:

  1. Agradeça pelo azar. “As más andanças e as tribulações […] são dons de Deus, que Ele dá aos seus filhos muito amados”.
  2. Tenha muitas doenças. Elas são bênçãos de Deus. Conforme nos lembra o autor, homens fortes e sãos podem caçar nos campos, mas homens frágeis fazem coisas melhores em casa.
  3. Seja feio. Siga o exemplo do belo rapaz que, para não tentar as mulheres, desfigurou o próprio rosto.
  4. Nunca dance. Os pés são o caminho da perdição, porque possibilitam os jogos e as danças, “que são rede do diabo”. Lembre-se: “dançar é movimentar-se como uma besta no ermo“. Para o autor, toda dança é uma procissão do diabo e quem a pratica está condenado à sexta parte do inferno. Conclui: “seria melhor ao homem não ter pés“.
  5. Seja pobre. Lembre-se do filósofo Diógenes, que vivia num barril (como o filósofo Chaves). Do mundo nada se leva, então se desapegue desde já.
  6. Vista-se mal. Roupas velhas e feias agradam mais a Deus do que trajes novos e decorados.
  7. Seja cego. A visão é enganosa e, portanto, prejudicial como um basilisco, que arruína quem o observa.
  8. Seja surdo. O prazer da audição pode levar à perdição, como acontece com o canto das sereias. Segundo o autor, “mulher cantadeira é capelão do diabo”.
  9. Evite a companhia dos parentes. Segundo o autor, eles geralmente são má influência e pedem dinheiro.
  10. Seja solitário. As amizades quase sempre propiciam a traição, e dificultam a contemplação.
  11. Evite a higiene. Lavar o rosto, pentear os cabelos e cuidar da limpeza pessoal são coisas vãs e inúteis. Para o autor, por exemplo, mulher que se arruma é louca.
  12. Suporte bullying. Sócrates não se incomodava com o escárnio de suas duas mulheres. Segundo o autor, uma delas certa vez se zangou com o filósofo e, depois de xingá-lo, jogou-lhe água suja sobre a cabeça. Sócrates riu e disse: “Bem sabia que depois destes trovões havia de vir chuva”.
  13. Evite a comodidade. Tenha uma casa grosseira, e camas e cadeiras duras.
  14. Seja desprezado. Para o autor, “certamente, bem escolhe aquele que quer ser enjeitado e desprezado nesse mundo”.
  15. Evite faxinas: o asseio da casa é coisa vã.
  16. Não tenha filhos. Para o autor, não há qualquer razão para gerar descendência. Como diria Brás Cubas: não transmita a ninguém o legado de sua miséria.

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